Os REA e o Ensino Básico e Secundário: Que Desafios?
Resumo:
O
presente texto parte de uma reflexão no âmbito da unidade curricular de Materiais
e Recursos Para eLearning, do curso de 2.º Ciclo, Pedagogia do eLearning, da
Universidade Aberta, sobre o movimento dos Repositórios de Educação Aberta
(REA), dos desafios que se lhes colocam e das potencialidades ao nível do
trabalho com os jovens. A educação aberta e as metodologias abertas marcam uma
clivagem com a sala de aula tradicional, pela exposição, interação e incursão
do outro no trabalho realizado. Fazer chegar os REA ao universo escolar, em
geral, criar o gosto pela investigação nos jovens e apostar em práticas
pedagógicas ligadas ao trabalho de projeto e à interdisciplinaridade na
educação básica e no ensino secundário em Portugal poderão ser desafios
potenciadores do uso e da produção de REA.
Palavras-chave:
Repositórios de Educação Abertos, literacia digital, práticas de
ensino/aprendizagem
Em
2020, a UNESCO estabeleceu “The Open Educational Resources (OER) Dynamic
Coalition” no sentido de garantir a implementação das quatro áreas de ação
definidas em 2019 a propósito dos Repositórios de Educação Abertos (REA):
capacitação para a utilização dos REA; desenvolvimento de políticas de apoio;
inclusão e equidade efetivas no acesso aos REA de qualidade; manutenção e
criação de modelos de sustentabilidade para REA. Há, neste sentido, uma forte
aposta na inclusão e equidade no acesso ao ensino, uma vez que o processo de
aprendizagem pode entrar nas nossas casas com garantia de qualidade e ser
‘alimentado’, mantendo um acervo de dimensões épicas disponível em qualquer
parte do mundo.
Os
REA são, assim sendo, coleções digitais que, segundo a UNESCO (2011), assumem a
forma de cursos/programas completos, materiais de cursos, módulos, guias de
estudantes, livros didáticos, artigos científicos, vídeos, ferramentas,
instrumentos de avaliação, materiais interativos, entre outros. Uma diversidade
de suportes que David Wiley, na sua intervenção no 2009 Penn State Symposium
for Teaching and Learning, apresenta como universais, mesmo em ambientes
desconectados, uma vez que os REA possibilitam a cópia em formatos físicos e
distribuição subsequente. Atente-se ainda no termo educação (ao invés de
educativo onde está subjacente a ideia de ter sido criado especificamente com
uma finalidade didática) que aponta para o ato de educar e que, assim sendo,
abrange qualquer recurso aproveitado para ensinar, mesmo que não tenha sido
criado para tal. Os recursos disponibilizados carecem de reconhecimento
científico a partir da certificação mediante uma licença aberta de propriedade
intelectual, são de utilização livre e gratuita e “são atualmente vistos como
um caminho natural na implementação da aprendizagem a distância, educação
aberta e novas abordagens pedagógicas” (Pestana & Cardoso, 2018).
David Wiley (2011), a propósito da licença aberta, refere esta permissibilidade de acesso no domínio público, “to reuse the artifact (e.g., publicly display or perform), permission to copy and redistribute the artifact (e.g., share), permission to revise the artifact (e.g., translate or localize), and permission to remix the artifact with other artifacts (e.g., mashup or collage)”. Assim, à semelhança dos 5R recomendados para o estilo de vida ecológico, os REA permitem a sua cópia (Retain), utilização na forma original (Reuse) ou alterada/modificada (Revise), combinada com outro conteúdo aberto (Remix) e a partilha em qualquer uma das formas anteriormente referidas (Redistribute). Ou seja, são “PRÁTICAS nas quais as pessoas se envolvem, eles fornecem uma base para a garantia de uma qualidade consistente.” (Nobre, 2020, p. 28). Podem ser entendidos como uma sucessão regular de ações que impulsionam a evolução dos REA, em termos quantitativos e qualitativos, criando um ciclo evolutivo:
Estas
práticas que adensam a quantidade de REA pelo ritmo que lhes vai sendo
conferido constituem-se como uma espiral em que aquele que procura e utiliza se
sente impelido a colaborar. Stephen Downes (2010) refere-se a agents
provocateurs e a subversive acts, conferindo ao movimento um
carácter de rebeldia e de ousadia, um ‘grito de Ipiranga’ num mundo educativo tendencialmente
fechado e estereotipado, em que o ensino ocorre, regra geral, à porta fechada,
sem tradição colaborativa.
Acresce
ainda o conceito de ‘interoperabilidade’, referido no Caderno REA (Universidade
Aberta, 2013) que cruza a ação do licenciamento aberto com a utilização de
formatos acessíveis, manifestamente uma preocupação em disponibilizar, tornar o
acesso simples e rápido, e a ‘desterritorialização’ do conhecimento “sem
limitações físicas e sem a sua tradicional associação exclusiva ao ambiente
escolar formal” (Nobre, 2020). Será caso para pensar que o pequeno passo de
disponibilizar um recurso se pode tornar num grande passo para a equidade no
acesso à educação. A ubiquidade ao serviço da equidade.
É
neste mundo digital que, formal ou informalmente, qualquer indivíduo pode
promover a sua Aprendizagem ao Longo da Vida, com um índice de qualidade cada
vez superior pelo recurso aos REA e no espaço físico que lhe aprouver. E esta
credibilização dos recursos passa por um escrutínio nunca considerado. O
recurso aberto sofre a revisão dos pares e credibiliza a instituição por detrás,
se for o caso. Curiosamente, Martin Weller (2010) tece considerações como a
passividade de quem recorre aos grandes repositórios, por os considerar de alta
qualidade, ao contrário do que acontece com os pequenos, ou ainda o facto de
tendencialmente as pessoas não valorizarem o gratuito ou de o considerarem
suspeito.
Estaremos
então a começar a casa pelo teto? Os alicerces existem, uma vez que a tendência
das políticas educativas está alinhada com a contribuição para o acesso ao
mundo virtual e este está povoado de recursos educacionais, no entanto, as
políticas educativas portuguesas e o ensino estão ainda longe de formar
cibernautas com competências digitas, capazes de interagir com o outro
virtualmente, numa cultura de respeito mútuo e de respeito pelas regras éticas.
De
acordo com um estudo do Conselho Nacional de Educação, realizado em 2020 e
divulgado em 2021, no sentido de identificar “as principais dificuldades, as
respostas dadas e os desafios enfrentados pelas escolas portuguesas com o
ensino a distância a partir de março de 2020”, foram diagnosticadas duas
grandes dificuldades: a insuficiência dos dispositivos digitais e da ligação à
internet com qualidade e a falta de formação adequada dos professores, dos
alunos e das famílias para a utilização de recursos digitais. Relativamente às
sessões síncronas, 84% dos professores inquiridos considerou-as eficazes “para
atingir alguns objetivos como esclarecer dúvidas, questionar e dar feedback,
explicar e clarificar conteúdos, apresentar desafios e exercícios”. Num ensino online
destruturado em que a comunidade escolar procurou uma adaptação rápida e os
professores se reinventaram, a sessão síncrona tomou o lugar da sala de aula, e
David Wiley (200) adverte que ‘não podemos fazer online o que fazemos na sala
de aula’. No entanto, esta situação de rutura forçada, este ensino a distância
destruturado pode ter despoletado o assentamento de um novo chão, por ter
levado a uma “reflexão imprevista sobre o ensino ministrado e também
experiências novas” (Duarte, 2021).
De
salientar que este processo de ensino-aprendizagem online em tempo de pandemia
não foi verdadeiramente um ensino a distância. O CNE (2021) refere-o como “ensino
remoto de emergência” evidenciando a distância física e a adoção de práticas
carentes de planeamento e de conhecimentos eficazes, uma vez que existe “falta
de formação específica que permita utilizar os recursos e ferramentas digitais
com intencionalidade pedagógica.” Os professores não foram preparados para
trabalhar nestes ambientes e “futuramente há que: trabalhar competências
elementares para a aprendizagem online por parte de formandos/estudantes e investir
no desenvolvimento de competências dos formadores/professores.” (Pedro, 2020)
Como
cita a docente da Universidade do Porto, Isabel Margarida Duarte:
A
recente demanda pela aprendizagem a distância aconteceu muito rapidamente,
impactando o planeamento escolar e as rotinas do educador. O setor de ensino
especializado em educação a distância, que nem sempre foi ouvido, poderia
prestar um serviço importante, contribuindo com orientações importantes para
uma transição suave (Duarte, 2021)
Efetivamente,
“muitas vezes sentimo-nos presos a materiais didáticos que não atendem nossas
necessidades ou contextos de trabalho. REA é uma chamada para a participação -
para que você faça uso de recursos existentes, mas para que também contribua
produzindo e modificando o que encontrar.” (Silva et al., 2014). Aproveitar um
momento de mudança para introduzir mudanças significativas, seria este o
desafio dos REA na educação básica e no ensino secundário de forma a
rentabilizar o investimento das políticas educativas na área da capacitação
digital, na disponibilização de equipamentos e apetrechamento das escolas. De
uma maneira geral, e este afigura-se um desafio para os REA, chegar mais cedo
ao ambiente escolar, entrar na sala de aula e proporcionar um trabalho de
pesquisa e documentação, que respeite a propriedade individual e desenvolva a
curiosidade científica e o espírito crítico, poderá colmatar a lacuna da
passividade no uso dos REA e da falta de estímulo para colaborar no movimento.
Em
2006, num estudo sobre REA solicitado pela OCDE/CERI, foram identificadas como
barreiras significativas à produção de REA a falta de tempo, a falta de um
sistema de gratificação e a falta de competência (Hylén, 2006). A incursão da
Educação Aberta assente num ensino centrado no aluno, em que devidamente
provocado o pusesse na senda da informação e em que a metodologia do trabalho
de projeto fizessem emergir estudos significativos, poderia contrariar a ‘falta
de competência’ e preparar o aluno para o ensino académico, estimulando a
autonomia, a atitude inquiridora e criativa e o gosto pela descoberta.
Obviamente que os docentes teriam um papel importante e que por osmose poderiam
(re)criar o gosto pela investigação científica contribuindo com ideias e
inclusivamente artigos que, em última instância, colaborassem com o movimento
dos REA. Segundo a UNESCO (2020), “OER provide a promising solution to access,
create and share knowledge and support learning for learners of all grade
levels, as well as for teachers, teacher trainers and educators, parents,
educational policy makers and governmental bodies.” De facto, “Os REAs são uma
presença obrigatória na aprendizagem do futuro, ao promoverem a criatividade,
valorizarem a essência humana e construírem uma inteligência coletiva. São uma
inovação na forma de pensar e assegurar o acesso ao conhecimento necessário à
Educação” (Nobre et al. 2017).
Considerando
os REA ao serviço de novas abordagens pedagógicas, os 5R como práticas
pedagógicas que envolvem as pessoas num trabalho com uma base de qualidade
consistente e o interesse da UNESCO nos REA enquanto promotores da inclusão e
da equidade, seria um desafio inserir o trabalho com estes Repositórios nas
salas de aula portuguesas, com práticas de investigação e de uso de ferramentas
digitais promotores de desenvolvimento de competências essenciais, a partir de
conteúdos. Centrar o ensino no aluno, colocar-lhe desafios, envolvê-lo em
projetos que incitassem à exploração de materiais de qualidade relacionados com
os temas em estudo, com revisão de literatura e promover sempre que possível um
trabalho colaborativo em sala de aula, mas, sobretudo, interdisciplinar. Levar
os termos ‘interoperabilidade’ e ‘desterritorialização’ a um nível menos
ambicioso, mas ainda assim ávido de ambição em sala de aula, na produção de
trabalhos, artigos e posterior divulgação online, desenvolvendo a literacia
digital, mas também a da comunicação, ao nível da leitura e da escrita.
Convocar os professores da educação básica e do ensino secundário a serem
“agents provocateurs”, a provocarem nos seus alunos o desejo de navegação na
internet no caminho da informação e da reutilização e a provocarem-se a si
próprios no domínio paulatino do espólio advindo do ambiente virtual, quer em
recursos, quer em ferramentas, promovendo a Aprendizagem ao Longo da Vida e, em
última instância, tornando-se produtores de REA.
REFERÊNCIAS
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